14 de jul. de 2009

“Medo e submissão” de Amélie Nothomb. Record (2001) 146 páginas.


Amélie Nothomb é uma escritora belga nascida no Japão, este confronto de cultura aparece claramente neste romance vencedor do Grande Prêmio da Academia Francesa. A trama é um relato, com profunda licença poética, do período em Amélie passou como estagiária em uma empresa no Japão. A narrativa de Nothomb mostra a cultura social japonesa em constante sabatina aos olhos de uma ocidental, com tendência a uma visão caricaturada. A rigidez da hierarquia japonesa, o diferente tratamento de gêneros e uma xenofobia descrita de maneira sutil levam a relação entre Amélie e sua chefe imediata, Fubuki Mori. A inicial admiração de Amélie pela sua chefe é explicitada pela autora ao descrevê-la com detalhes libidinosos. No entanto, a relação chefe-subordinado da cultura japonesa leva aos sentimentos que dão título ao livro. A incompetência narrada em Nothomb conseguir cumprir as tarefas que sua chefe a designava não ajudava na melhoria da relação. Tal incompetência leva ao trecho mais cômico do livro – e difícil de acreditar em sua veracidade – em que Amélie extenuada por não conseguir cumprir suas tarefas, dança nua pelas mesas do escritório da empresa durante uma das madrugadas que fazia serão. As reflexões sobre o papel da mulher japonesa na escala social, e suas aspirações feitas por Amélie por volta da metade do livro, mostra o perigo de analisar outras culturas com um olhar pré-concebido de superioridade da cultura do observador em relação à observada. Os trechos que mais explicitam esta relação estão na página 77, em forma de conselho “Entre o suicídio e a transpiração, não hesites. Derramar o próprio sangue é tão admirável quanto é inominável derramar o próprio suor. Se fores ao encontro da morte, nunca mais transpirará, e tua angústia estará encerrada por toda a eternidade” e na página 123 “O Japão, como se sabe, é o país com os mais altos índices de suicídio. Pois de minha parte o que me causa espécie é que o suicídio não seja mais freqüente no país”.
A sexualidade permeia toda narrativa, seja de maneira discreta na admiração de Amélie aos atributos de sua chefe, seja de maneira explicita ao descrever uma bronca do vice-presidente a Fubuki como tendo caráter sexual. Após este episódio, a tentativa feita por Nothomb de consolar sua chefe resultou na determinação de uma nova tarefa a ela, cuidar dos banheiros, onde fica por vários meses. As conseqüências desta “promoção” aos olhos dos outros funcionários da empresa causa mais mal estar entre Amélie e sua chefe, e serve de gancho para nova análise da cultura japonesa de maneira caricaturada pela autora.
Interesse, e quase intercultural, é a descrição entre a opção que muitos têm que fazer entre o sucesso profissional e pessoal, personificado no enredo em Fubuki Mori, que aos vinte e nove anos, progrediu na carreira como executiva e se mantinha solteira.
Ao fim, quando Amélie decide declarar a toda escala hierárquica que não tinha interesse em renovar seu contrato, as diferentes reações ao seu pedido são descritas de maneira singular. O livro termina com a volta para a Europa e o início da carreira como escritora.
O livro é quase uma autobiografia. Seus méritos estão na forma, uma narrativa leve e envolvente. Leva o leitor a horas de distração agradável. No entanto, falha no conteúdo, ao caricaturizar toda uma herança cultural de um povo, com a arrogância que caracteriza muitos de nós de que nossas tradições são melhores que a dos outros. Um bom livro, baseado em uma visão de mundo que se pode discutir.
Classificação pessoal e arbitrária: três estrelas

4 comentários:

  1. Caro Felipe,

    Se a proposta fosse um comentário acadêmico ou de crítica literária (estou me referindo ao seu comentário), eu deveria assinalar algumas cuidados a se ter. Por exemplo quando se trata narrador, autor e personagem como uma só pessoa. Isso não é mero procedimento de literato, mas uma precaução que reserva à ficção um direito e uma cláusula de releitura até mesmo quando a proximidade (autora/narradora/personagem) é evidente e o clichê ameaça. Também vale para o "verossímil": a cena dela dançando nua não é realista, porém pode mostrar o que a consciência ou o eu ocidental sofre ao esbarrar com outra lógica, chegando ao delírio, ao "estupor" e a "tremor" (palavras do título original). E, a meu ver aí a ficção mostra sua reserva quase infinita de surpresa, talvez por mostrar também a inevitável vitória da lógica ocidental, também põe em evidência sua indeclarada indestrutibilidade, dando a discutir esta visão de mundo, como você diz.
    No entanto, os indícios são muitos de que esta visão não dá margem a uma interpretação mais favorável da situação estereotipada, e nisso a autora (a autora?) dá ainda um depoimento final acho que sob a forma de uma carta, que à primeira leitura me pareceu infeliz, personalizante demais (talvez eu não tenha gostado justamente por desmontar minha teoria?). Talvez me julgarás então, na primeira parte do comentário, como condenscendente. Só queria reservar mais uma chance à "autora" contra sua própria personagem/narradora.
    Mas teu comentário, elucubrações à parte, me parecem justificadas e imparciais. Melhor: mostram uma preocupação em perservar a cultura alheia de nosso olhar homogeneizante e clicheizante. Esta preocupação mostra que, mesmo não sendo esta a conversa de um "crítico literário" como outro "crítico literário", estou tentando responder à altura de um leitor crítico. E isso é muito melhor por mais de um motivo. Entre estes há um: alguém sem compromisso profissional direto com a literatura, comentando hoje criticamente, e sem... medo nem submissão!
    Eu só seria um pouco mais enfático com o mérito da forma, como leitor parceiro: é mais do que leve e envolvente, embora já seja muito.
    Até a próxima, espero...
    Olivier Allain.

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  2. Aliás, é ótima a classificação das estrelas, sobretudo no que representam...

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  3. Olivier, tuas colocações são muito importantes, sempre o contraponto faz crescer os que não tem a mesma opinião (ainda bem que as pessoas tem opiniões diferentes). No entanto, sempre ele, a autora diz que descreve a passagem dela no Japão, como leitor, apenas, fica entendido por mim que todas as colocações e situações no livro devam ser reais, como no caso da dança nua.
    Para esclarecer, sempre quando coloco meus comentários, são de um leitor com formação em exatas e apreciador de livro, se um escritor escreve para escritores, a priori já não gosto do livro e do autor. Não acredito que seja o caso da autora em questão.

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  4. Gente que delícia ler o que vcs escrevem....

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